João
Brandão adere ao “Punk”?
Carlos
Drummond de Andrade
João Brandão, estudioso de fenômenos sociais,
modismos e frivolidades, dedica-se no momento à pesquisa do punk.
– Ainda não cheguei a nenhuma conclusão – disse-me
ele. – Mas suspeito que o punk veio atender às necessidades do país nesta
conjuntura. E acrescentou:
– Não me refiro, é claro, a modalidade do punk
cultivado pelas classes alta e média da zona sul. Este é um punk de espírito e
camisetas importados, jaqueta de couro valendo um punhado de dólares. É artigo
de importação, que deve figurar na lista de produtos proibidos pelo Delfim.
Refiro-me ao outro, o de camiseta adquirida na rua Senhor dos Passos e rasgada.
O moço não a rasgou para demonstrar maior identificação com o punk: ela está
rasgada porque é velha e muito batida. Em suma, o punk pobre.
– Que diferença faz, se esta é uma característica
exterior? – perguntei-lhe. – Faz muita diferença, porque o punk dos pobres,
suburbano e sofrido, revela no seu despojamento, que para ser punk é necessário
enfrentar uma barreira e abrir mão de toda a sociedade de consumo.
Ao passo que o Leblon é consumista, no esquema
clássico.
– O João, e todos dois não estão inseridos nessa tal
sociedade burguesa de consumo, que se diverte com seus palhaços, contestadores
ou oficialistas?
– Não importa que a sociedade como estamento seria
dos dois grupos e os tolere igualmente, enquanto a indústria fabrica objetos sofisticados
para o uso do punk de salão. Importa é a atitude deles diante da vida. Um finge
contestar, outro contesta mesmo.
– Contesta em verso, em som, em gesticulação, em
aparência.
– Mas
contesta com convicção, né? Porque os punks malditos sabem que, passada a moda,
eles terão de inventar outra forma de lazer que seja protesto, ou outra forma
de protesto que seja lazer, ao passo que os ricos não estão ligando para isso,
o futuro deles está garantido, na medida em que pode garantir alguma coisa no mercado
de vida. Então eu simpatizo com o punk despojado, mau poeta e mau cantor, mas
empolgado pela missão que se atribui, de destruir a ordem conservadora por meio
da música, do grito, do gesto e do anarquismo primário.
– Eles são inocentes, talvez.
– E daí?
A inocência ainda não chegou a ser crime, embora não esteja muito longe disso.
Os punks trazem uma receita de aparência ingênua, mas que tem sentido. Se tudo
está errado por aí – e todos nós estamos mais ou menos convencidos disso – uma
postura punk, descrente dos métodos e processos consagrados para nos salvar do
abismo, tem razão de ser. Os garotos dizem as coisas com franqueza selvagem. A
arte deles não é mozartiana ou sequer seresteira de diamantina, mas tem função,
explica-se pela circunstância.
–
Desculpe: são todos uns alienados.
– É possível,
mas os alienados do lado de cá, do meu, do seu lado, curtem uma alienação maior
ainda, porque reconhecem o erro e nele perseveram, como se não o reconhecessem.
O punk pode não ser novidade, e parece que depois do antigo testamento não
apareceu nada de novo sob o sol. Mas ele dá um recado. Não é à toa que o punk
de verdade tem seus arraiais em São Paulo, onde outro dia aconteceu aquilo que
você sabe. A maioria dos rapazes nem mesmo está desempregada, porque ainda não
conseguiu emprego. Vestem-se de preto porque a situação deles está preta, a
roupa é rasgada porque não há outra. Os versos são detestáveis, porque a vida
ficou detestável para o maior número. O som é infernal, porque o inferno está aí.
Os punks não pretendem ser simpáticos, eles querem mesmo é gozar da antipatia
geral. Estão divididos, eu sei, e não só entre ricos e pobres. Dividem-se entre
pobres e pobres, cada grupo achando que o outro grupo está errado, mas na
própria variedade de erros está a marca geral deles, um sinal de inconformismo
até consigo mesmos. Não há praticamente duas pessoas no país, neste momento,
que tenham opiniões concordantes sobre o que é preciso fazer para consertar o
torto social. Todos acham que é urgente aquele milagre que não seja milagre
falso, mas ninguém conhece a fórmula ou, se conhece, não conta. O punk é mais
sério do que ousamos imaginar. Até seu nome impressiona. Que quer dizer punk?
"Madeira podre, isca, mecha, fedelho", segundo os dicionários. Não quer
dizer nada de unívoco. Pra mim, punk, londrino, quer dizer pum, em português
coloquial. E é isso mesmo: um gás importuno, estrondoso, no salão de festa, na
rua, no gabinete da autoridade. É um som altamente contestatório das
conveniências, preconceitos e ideias congeladas.
– João,
estou te estranhando!
– Eu
também estou me estranhando. E estou gostando de me estranhar. Mas sou apenas
um observador, desculpe. Como disse, não conclui nada, por enquanto. O que
disse são palpites. Talvez eu tenha de descobrir uma velha camiseta rasgada,
pregar nela uma estampa de caveira ou de enforcado, e sair por aí, passando
para trás roqueiros e newaweiros, e cantando a anarquia como forma de pagamento
da dívida externa. Quem sabe? O bom observador tem de infiltrar-se no meio observado
e adotar seus códigos.
Crônica publicada no Jornal do
Brasil em 14/04/1983.