30/12/2021

Vísceras Sonoras




Do meio de 2020 ao fim de 2021 desenvolvi um projeto de rock punk, punk rock, vice-versa... O nome é Vísceras Sonoras. 

Como complemento, escrevi o que estou chamando de 'zinencarte' (zine+encarte), para contar minha trajetória com a música, o processo do projeto e algumas reflexões sobre as letras:

Disponível em: https://www.pulsaodescrita.com/_files/ugd/55a262_b20b929b17f54ba6a9db8670477a330f.pdf?index=true

O álbum com 8 sons está nas plataformas digitais. 

Spotify:

https://open.spotify.com/artist/7D6IKPMlF5ATrFArwly9O2

Youtube:

https://youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kAG3dfTK9SULgrXkEv4qFatnTEh3gRy5Q




20/12/2021

João Brandão adere ao "Punk"? - Drummond

 

João Brandão adere ao “Punk”?[1]

Carlos Drummond de Andrade

 

                João Brandão, estudioso de fenômenos sociais, modismos e frivolidades, dedica-se no momento à pesquisa do punk.

                – Ainda não cheguei a nenhuma conclusão – disse-me ele. – Mas suspeito que o punk veio atender às necessidades do país nesta conjuntura. E acrescentou:

                – Não me refiro, é claro, a modalidade do punk cultivado pelas classes alta e média da zona sul. Este é um punk de espírito e camisetas importados, jaqueta de couro valendo um punhado de dólares. É artigo de importação, que deve figurar na lista de produtos proibidos pelo Delfim. Refiro-me ao outro, o de camiseta adquirida na rua Senhor dos Passos e rasgada. O moço não a rasgou para demonstrar maior identificação com o punk: ela está rasgada porque é velha e muito batida. Em suma, o punk pobre.

                – Que diferença faz, se esta é uma característica exterior? – perguntei-lhe. – Faz muita diferença, porque o punk dos pobres, suburbano e sofrido, revela no seu despojamento, que para ser punk é necessário enfrentar uma barreira e abrir mão de toda a sociedade de consumo.

                Ao passo que o Leblon é consumista, no esquema clássico.

                – O João, e todos dois não estão inseridos nessa tal sociedade burguesa de consumo, que se diverte com seus palhaços, contestadores ou oficialistas?

                – Não importa que a sociedade como estamento seria dos dois grupos e os tolere igualmente, enquanto a indústria fabrica objetos sofisticados para o uso do punk de salão. Importa é a atitude deles diante da vida. Um finge contestar, outro contesta mesmo.

                – Contesta em verso, em som, em gesticulação, em aparência.

                – Mas contesta com convicção, né? Porque os punks malditos sabem que, passada a moda, eles terão de inventar outra forma de lazer que seja protesto, ou outra forma de protesto que seja lazer, ao passo que os ricos não estão ligando para isso, o futuro deles está garantido, na medida em que pode garantir alguma coisa no mercado de vida. Então eu simpatizo com o punk despojado, mau poeta e mau cantor, mas empolgado pela missão que se atribui, de destruir a ordem conservadora por meio da música, do grito, do gesto e do anarquismo primário.

                – Eles são inocentes, talvez.

                – E daí? A inocência ainda não chegou a ser crime, embora não esteja muito longe disso. Os punks trazem uma receita de aparência ingênua, mas que tem sentido. Se tudo está errado por aí – e todos nós estamos mais ou menos convencidos disso – uma postura punk, descrente dos métodos e processos consagrados para nos salvar do abismo, tem razão de ser. Os garotos dizem as coisas com franqueza selvagem. A arte deles não é mozartiana ou sequer seresteira de diamantina, mas tem função, explica-se pela circunstância.

                – Desculpe: são todos uns alienados.

                – É possível, mas os alienados do lado de cá, do meu, do seu lado, curtem uma alienação maior ainda, porque reconhecem o erro e nele perseveram, como se não o reconhecessem. O punk pode não ser novidade, e parece que depois do antigo testamento não apareceu nada de novo sob o sol. Mas ele dá um recado. Não é à toa que o punk de verdade tem seus arraiais em São Paulo, onde outro dia aconteceu aquilo que você sabe. A maioria dos rapazes nem mesmo está desempregada, porque ainda não conseguiu emprego. Vestem-se de preto porque a situação deles está preta, a roupa é rasgada porque não há outra. Os versos são detestáveis, porque a vida ficou detestável para o maior número. O som é infernal, porque o inferno está aí. Os punks não pretendem ser simpáticos, eles querem mesmo é gozar da antipatia geral. Estão divididos, eu sei, e não só entre ricos e pobres. Dividem-se entre pobres e pobres, cada grupo achando que o outro grupo está errado, mas na própria variedade de erros está a marca geral deles, um sinal de inconformismo até consigo mesmos. Não há praticamente duas pessoas no país, neste momento, que tenham opiniões concordantes sobre o que é preciso fazer para consertar o torto social. Todos acham que é urgente aquele milagre que não seja milagre falso, mas ninguém conhece a fórmula ou, se conhece, não conta. O punk é mais sério do que ousamos imaginar. Até seu nome impressiona. Que quer dizer punk? "Madeira podre, isca, mecha, fedelho", segundo os dicionários. Não quer dizer nada de unívoco. Pra mim, punk, londrino, quer dizer pum, em português coloquial. E é isso mesmo: um gás importuno, estrondoso, no salão de festa, na rua, no gabinete da autoridade. É um som altamente contestatório das conveniências, preconceitos e ideias congeladas.

                – João, estou te estranhando!

                – Eu também estou me estranhando. E estou gostando de me estranhar. Mas sou apenas um observador, desculpe. Como disse, não conclui nada, por enquanto. O que disse são palpites. Talvez eu tenha de descobrir uma velha camiseta rasgada, pregar nela uma estampa de caveira ou de enforcado, e sair por aí, passando para trás roqueiros e newaweiros, e cantando a anarquia como forma de pagamento da dívida externa. Quem sabe? O bom observador tem de infiltrar-se no meio observado e adotar seus códigos.


[2]


[1] Crônica publicada no Jornal do Brasil em 14/04/1983. 

[2] Imagem disponível em: https://news.google.com/newspapers?id=BwEkAAAAIBAJ&sjid=N80EAAAAIBAJ&hl=pt-BR&pg=1026%2C4609361. Acesso em: 20 dez. 21. Caderno B, p. 7, quinta-feira, 14/04/1983.