17/06/2016

Sobre Muralhas

Mais um dia, diferente daqueles vividos sob olhares atentos de vigias. Estou na biblioteca construída pelo Estado no lugar dos pavilhões abarrotados de esperanças perdidas.

      Na capital das edificações de paradoxos, este é o meu: vir aqui todos os dias. Mais de um terço da minha vida passei encarcerado na consequência de meus atos; para mim, certos no momento de suas execuções –  tive meus motivos e eles me cegaram. Não sou um bicho qualquer, sei bem quais são os valores morais da sociedade, os individuais e os limites de ser humano.

       Quando o tempo permitiu a assinatura da minha alforria, ganhei a solidão. O pouco que tive, perdi antes do fim do jogo. Saí sem perspectivas e dignidade. Disseram que eu estava apto a retornar ao convívio detrás do muro, mas ninguém me aceitou nesse mundo veloz, cheio de novos aparelhos, gente e pouca solidariedade. Mendiguei.

      Após o grande massacre de números velados, o Estado com um mea culpa cinematográfico demoliu os prédios – depois de abri-los à visitação de pessoas inocentes cheias de desejos culpados e curiosidades sombrias (qual o sentido de conhecer uma prisão? Preparar-se para cumprir a pena de seus defeitos?) Como no genocídio, estive na implosão. Senti que mais uma parte de mim estava virando pó. Vi subirem fantasmas de conhecidos, desconhecidos e os meus próprios. Vi caírem certezas e incertezas. Passei três dias ali, aspirando enxofre.

     Com a demolição física surgiu minha reconstrução moral. No canteiro de obras deste parque composto de biblioteca, faculdade, espaço aberto, árvores e alegrias, me entregaram ferramentas. Cavava a terra, carregava pedras, martelava minhas angústias e enterrei minha aflição. Sou parte disso tudo, do fim ao recomeço.

      Venho aqui todos os dias, para não deixar a memória dessa história dar lugar ao esquecimento do recalque. Tomo meu banho de sol, sem marcação de tempo. Caminho por alamedas calçadas ou morros gramados, raramente lembrando dos corredores, quando eles querem me tomar de assalto vou ao prédio da faculdade e caminho por lá, ainda é o mesmo prédio (já nos contaram bastante sobre a igualdade de aparência entre escolas e prisões), assim não sou vencido por meus medos, acolho-os transfigurando-me. 

      Nessa visita diária, vou à prateleira, pego o mesmo título da literatura universal, sento no mesmo lugar e sinto o preenchimento da renovação.


       Agora sou eu quem observa do alto os brotos nas ruínas.



Créditos da foto: Francisley da Silva Dias 16/06/16
Um Sonho de Liberdade - Domenico Calabrone