15/04/2024

Joia roubado

 

Despertou uma hora e meia antes do alarme do celular tocar.

Tem sido assim desde o primeiro dia no novo trabalho.

As causas são diversas: demanda de tarefas pessoais e profissionais, desorganização no lar e trabalho, reclamações de familiares e colegas, naturalização do mal social.

Alta performance, é assim que chamam.

Esse desarranjo no sono também acontece nos finais de semana. Achou que duraria apenas o período dos três meses de experiência. Segue no quinto.

Quinto dos infernos.

Levantou, engoliu meio copo de água sem encostar a boca na borda, pra não ter que lavar mais um pedaço de louça. Mijou no escuro, pra não acender a retina sonolenta. Voltou pra cama, deitou e não cochilou antes dos dez minutos faltantes pro alarme do celular. Que inferno!

Parece que a angústia é um tipo de calculadora temporal na autossabotagem.

Nessa dispersão, pensou tudo aquilo que pensamos quando imergimos na insônia.

Aquela massa ansiosa de arrependimentos, planos e inutilidades insolúveis dos massacres cotidianos.

Dez minutos de soneca. Novo alarme. Levantar-se cronometrado.

Cagou. Tomou banho. Se vestiu. Comeu uma banana. Escovou os dentes. Calçou os tênis. Tudo no escuro e nas pontas dos pés pra não acordar as outras pessoas da casa que dali uma hora fariam quase as mesmas coisas.

Feito um alarme pontual, ouviu o vizinho sair. 6h.

De casa à estação do trem, o mesmo trajeto a pé. Um quilômetro em dez minutos, se não precisar parar em nenhum sinal de trânsito.

Com a atenção no medo de assalto iminente, a cada moto, uma taquicardia; a cada carro lento, aceleração dos passos; diante das poucas pessoas que cruzam seu caminho, a imagem de bestas ameaçadoras.

No trabalho, gosta de chegar vinte minutos antes do horário combinado, pra sentar, tomar um gole de café ruim e esperar o sinal da primeira aula chamar, antes da equipe de professoras e professores chegar.

Time pedagógico, é assim que a administração chama.

O colégio é centenário, parte de uma missão católica, vendido a uma fundação política e revendido a um grupo de especulação educacional: Rede No Cume.

Este ano, o segundo da nova rede, é de grandes mudanças.

Pessoas antigas demitidas, novas admitidas. Ganhando pouco, trabalhando muito.

Alta performance, é assim que chamam.

Na reforma, quebraram paredes e as reergueram, justificando o valor milionário do investimento divulgado. Lousas modernas, equipamentos eletrônicos e uma porção de aparatos pouco funcionais que ilustram os clichês do demagogo discurso pedago-econômico.

Falácias emergentes.

Alguns espaços, aqueles que não são feitos pra investidor ver, continuam deteriorados como há tempos estavam. Banheiros, refeitórios, salas de reunião, enfim, lugares utilizados por quem trabalha, não por quem paga.

Na mínima demonstração de respeito pela história, sem assustar demais a comunidade antiga com as mensalidades em dia, mantiveram intacta a capela e a imagem da santa europeia que dá nome ao lugar.

A capela está trancada, empoeirando. Fiel representação do pensamento católico atual.

A santa fica lá, no jardim perto da porta, intocável, esquecida, apesar de estar à vista de todas as pessoas.

Ninguém olha pra ela, ela não ora por ninguém.

Quem investiu milhões nessa aquisição diz que irá revolucionar. Trazendo o que há de mais contemporâneo nas metodologias ativas e inovadoras da Educação.

Garantindo a beleza do passado, alinhada com os avanços do futuro.

O maior fetiche está no desenvolvimento das tecnologias digitais, sobretudo no uso de Inteligências Artificiais.

Voltando à sala das professoras e dos professores (ou do time pedagógico, como você prefere?), todas e todos se adaptaram ao uso do novo método de bater o ponto de entrada.

Um aplicativo no celular, que apoiado na geolocalização, registra hora e local com exatidão. Local exato mesmo: sala tal, corredor x, escada y, banheiro, porta de entrada, fundos, capela (capela não, ninguém vai lá).

Uma graça está no fato de que além do registro de tempo e espaço, o aplicativo tira uma fotografia de quem o utiliza.

Outra graça está no nome do aplicativo: Mexerica.

Houve quem reclamou a variação linguística:

 

“Deveria chamar tangerina”

“Não, não, bergamota”

“Que nada, ponkan, deveria ser, ponkan”

“hahahahahaha”

 

Todos os dias alguém lembra o time:

 

“Olha pro Mexerica, pessoal!”

“Capricha na foto!”

“Só não ri muito, se não vão achar que estamos contentes!”

“hahahahahaha”

 

Diante das brincadeiras, aquela pessoa dos parágrafos iniciais, a que estamos acompanhando, tentava achar graça.

Às vezes até achava, mas no geral se incomodava.

“Mexerico, isso não passa de um mexerico” – pensava alto e já falou baixinho, sem ninguém ouvir.

Seu celular está cada vez mais incapaz, sem espaço.

Praticamente serve apenas de despertador na rotina insone, no acesso aos aplicativos do banco digital, de música e o de troca de mensagens. No qual já não consegue ouvir áudios, ver figurinhas, fotos e vídeos.

A cada atualização desses aplicativos, menos espaço.

Pro Mexerica, utilizava a versão web. Achava estranho que não há solicitação de fotografia. Melhor assim, sempre estava de cara feia e cansada.

O inverso do contentamento também é perigoso.

Ao longo do semestre, o tempo escolar se arrastou com suas reuniões pedagógicas sem pautas convincentes, avaliações de conteúdos não absorvidos, inúmeras ocorrências indisciplinares, licenças médicas dos quadros de ansiedade, pânico, depressão e tentativas suicidas de professoras, professores e estudantes.

Até que o tão esperado fim de junho chegou, com a promessa celebrativa de julho.

Antes, uma mudança profunda.

A Rede no Cume impôs que não houvesse mais contratos CLT. A partir de agosto todas as pessoas do colégio deveriam ser PJ.

Quem aceitou, recebeu sua rescisão e um tutorial de abertura da MEI.

Quem não aceitou, entrou com ações sindicais que não darão em nada.

Julho passou, agosto chegou com caras novas e velhas expectativas.

A principal: a chegada de dezembro. Que quando chegou, trouxe uma violência inesperada.

Demissão em massa das professoras e dos professores.

Ao longo do ano, a Rede No Cume desenvolveu um novo sistema educacional, amparado no uso de IA (degenerativa, a meu ver).

Todas as aulas serão ministradas por avatares muito mais eficazes que pessoas – segundo a propaganda.

Conteúdos serão transmitidos com agilidade, qualidade e particularidade, pois cada estudante estará em conexão direta com a IA, por meio da leitura de íris realizada por um scanner acoplado na câmera dos tablets distribuídos gratuitamente no ato da matrícula ou rematrícula.

Desse modo, todas as reações biológicas serão monitoradas, na garantia da aprendizagem.

Pra que não haja estranhamento, os avatares terão aparência, voz e reações idênticas àquelas das professoras e dos professores.

Nos dias letivos, o Mexerica registrou as imagens e áudios, tratando-as na criação dessas personagens da revolução pedagógica.

Cada movimento, cada palavra, cada reação. Cada sentimento.

A permissão pra tal feito estava concedida na política de dados, não lida, obviamente.

No entanto, não parecendo tão antiética e amoral, a Rede No Cume ofereceu um contrato de liberação integral do uso da imagem, voz e sensações, oferecendo o valor líquido de um ano de salário – parcelado em 12 vezes – a cada professora e professor.

Nada além disso, já que PJ não tem direitos no fim dos projetos.

Direção e coordenação não receberam nada, porque não viraram avatares.

No colégio, o atendimento por pessoas será limitado a algumas atendentes burocráticas e aos seguranças que estarão pelos corredores e salas, na manutenção da ordem – esses tipos de profissionais também estão com os dias contados, a substituição humanoide se programa rapidamente.

Vale dizer que essa mudança é a partir do Fundamental 2.

Fecharam a Educação Infantil e o Fundamental 1.

(por enquanto há a dúvida de que crianças pequenas não se adaptam às tecnologias de cuidados digitais, mas Huxley está sendo estudado pra desfazê-la)

A maioria das famílias adorou e comprou a ideia. Poucas saíram.

O prefeito e o governador fecharam parcerias no teste da proposta, bancando a estadia de jovens estudantes dos dois seguimentos.

Fechando negócios pro futuro de administração particular da Educação Pública.

Do time pedagógico, pouca gente recusou, entrando em processos trabalhistas que não darão em nada.

Aquela pessoa que acompanhamos nesta jornada, na sua vez de conversar com a representante do RH, decepcionou-se com o resultado.

Já tinha ouvido tudo, queria aceitar a proposta, planejar o gasto das parcelas e seguir adiante.

Mas soube que não teria nada.

Como usava o Mexerica pela versão web, acreditando que não batia a foto, não fazia questão de posicionar bem a câmera e fazer pose nas leituras do sistema.

O que não sabia era que a foto estava sendo batida normalmente, com um pouco menos de qualidade no processo.

Por isso, seu banco de dados estava resumido aos tetos.

Nenhuma imagem pessoal, nenhum controle. Nenhum direito.

Isso não tinha sido percebido, pois o processo era todo automatizado, e neste caso específico um bug passou sem contestação.

Saiu da sala do RH com a boca amarga e o início de enxaqueca.

A sala era atrás da capela. Passou pela santa e pela primeira vez parou diante dela.

Notou que a pintura do rosto estava tão gasta que, sem olhos, ela não via ninguém, assim como ninguém a via. Suja, rachada.

Olhou seus santos pés descalços pisando a cabeça de uma serpente, sentindo o envenenamento mortal que lhe corroía.

Fixou-se nas mãos abertas da estátua, vendo que seu polegar esquerdo estava quebrado. Solto.

Olhou em volta, certificando que estava a sós com Maria.

Roubou-lhe o dedão.

Sua única lembrança física daquele lugar.

 

 

@francis.s.d


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