Despertou uma hora e meia antes do alarme do celular tocar.
Tem
sido assim desde o primeiro dia no novo trabalho.
As
causas são diversas: demanda de tarefas pessoais e profissionais,
desorganização no lar e trabalho, reclamações de familiares e colegas,
naturalização do mal social.
Alta
performance, é assim que chamam.
Esse
desarranjo no sono também acontece nos finais de semana. Achou que duraria
apenas o período dos três meses de experiência. Segue no quinto.
Quinto
dos infernos.
Levantou,
engoliu meio copo de água sem encostar a boca na borda, pra não ter que lavar
mais um pedaço de louça. Mijou no escuro, pra não acender a retina sonolenta.
Voltou pra cama, deitou e não cochilou antes dos dez minutos faltantes pro
alarme do celular. Que inferno!
Parece
que a angústia é um tipo de calculadora temporal na autossabotagem.
Nessa
dispersão, pensou tudo aquilo que pensamos quando imergimos na insônia.
Aquela
massa ansiosa de arrependimentos, planos e inutilidades insolúveis dos
massacres cotidianos.
Dez
minutos de soneca. Novo alarme. Levantar-se cronometrado.
Cagou.
Tomou banho. Se vestiu. Comeu uma banana. Escovou os dentes. Calçou os tênis.
Tudo no escuro e nas pontas dos pés pra não acordar as outras pessoas da casa
que dali uma hora fariam quase as mesmas coisas.
Feito
um alarme pontual, ouviu o vizinho sair. 6h.
De
casa à estação do trem, o mesmo trajeto a pé. Um quilômetro em dez minutos, se
não precisar parar em nenhum sinal de trânsito.
Com a
atenção no medo de assalto iminente, a cada moto, uma taquicardia; a cada carro
lento, aceleração dos passos; diante das poucas pessoas que cruzam seu caminho,
a imagem de bestas ameaçadoras.
No
trabalho, gosta de chegar vinte minutos antes do horário combinado, pra sentar,
tomar um gole de café ruim e esperar o sinal da primeira aula chamar, antes da
equipe de professoras e professores chegar.
Time
pedagógico, é assim que a administração chama.
O
colégio é centenário, parte de uma missão católica, vendido a uma fundação política
e revendido a um grupo de especulação educacional: Rede No Cume.
Este
ano, o segundo da nova rede, é de grandes mudanças.
Pessoas
antigas demitidas, novas admitidas. Ganhando pouco, trabalhando muito.
Alta
performance, é assim que chamam.
Na
reforma, quebraram paredes e as reergueram, justificando o valor milionário do
investimento divulgado. Lousas modernas, equipamentos eletrônicos e uma porção
de aparatos pouco funcionais que ilustram os clichês do demagogo discurso
pedago-econômico.
Falácias
emergentes.
Alguns
espaços, aqueles que não são feitos pra investidor ver, continuam deteriorados
como há tempos estavam. Banheiros, refeitórios, salas de reunião, enfim,
lugares utilizados por quem trabalha, não por quem paga.
Na
mínima demonstração de respeito pela história, sem assustar demais a comunidade
antiga com as mensalidades em dia, mantiveram intacta a capela e a imagem da
santa europeia que dá nome ao lugar.
A
capela está trancada, empoeirando. Fiel representação do pensamento católico
atual.
A
santa fica lá, no jardim perto da porta, intocável, esquecida, apesar de estar
à vista de todas as pessoas.
Ninguém
olha pra ela, ela não ora por ninguém.
Quem
investiu milhões nessa aquisição diz que irá revolucionar. Trazendo o que há de
mais contemporâneo nas metodologias ativas e inovadoras da Educação.
Garantindo
a beleza do passado, alinhada com os avanços do futuro.
O
maior fetiche está no desenvolvimento das tecnologias digitais, sobretudo no
uso de Inteligências Artificiais.
Voltando
à sala das professoras e dos professores (ou do time pedagógico, como você
prefere?), todas e todos se adaptaram ao uso do novo método de bater o ponto de
entrada.
Um
aplicativo no celular, que apoiado na geolocalização, registra hora e local com
exatidão. Local exato mesmo: sala tal, corredor x, escada y, banheiro, porta de
entrada, fundos, capela (capela não, ninguém vai lá).
Uma
graça está no fato de que além do registro de tempo e espaço, o aplicativo tira
uma fotografia de quem o utiliza.
Outra
graça está no nome do aplicativo: Mexerica.
Houve
quem reclamou a variação linguística:
“Deveria
chamar tangerina”
“Não,
não, bergamota”
“Que
nada, ponkan, deveria ser, ponkan”
“hahahahahaha”
Todos
os dias alguém lembra o time:
“Olha pro
Mexerica, pessoal!”
“Capricha
na foto!”
“Só
não ri muito, se não vão achar que estamos contentes!”
“hahahahahaha”
Diante
das brincadeiras, aquela pessoa dos parágrafos iniciais, a que estamos
acompanhando, tentava achar graça.
Às
vezes até achava, mas no geral se incomodava.
“Mexerico,
isso não passa de um mexerico” – pensava alto e já falou baixinho, sem ninguém ouvir.
Seu
celular está cada vez mais incapaz, sem espaço.
Praticamente
serve apenas de despertador na rotina insone, no acesso aos aplicativos do
banco digital, de música e o de troca de mensagens. No qual já não consegue
ouvir áudios, ver figurinhas, fotos e vídeos.
A cada
atualização desses aplicativos, menos espaço.
Pro
Mexerica, utilizava a versão web. Achava estranho que não há solicitação de
fotografia. Melhor assim, sempre estava de cara feia e cansada.
O
inverso do contentamento também é perigoso.
Ao
longo do semestre, o tempo escolar se arrastou com suas reuniões pedagógicas
sem pautas convincentes, avaliações de conteúdos não absorvidos, inúmeras
ocorrências indisciplinares, licenças médicas dos quadros de ansiedade, pânico,
depressão e tentativas suicidas de professoras, professores e estudantes.
Até
que o tão esperado fim de junho chegou, com a promessa celebrativa de julho.
Antes,
uma mudança profunda.
A Rede
no Cume impôs que não houvesse mais contratos CLT. A partir de agosto todas as
pessoas do colégio deveriam ser PJ.
Quem
aceitou, recebeu sua rescisão e um tutorial de abertura da MEI.
Quem
não aceitou, entrou com ações sindicais que não darão em nada.
Julho
passou, agosto chegou com caras novas e velhas expectativas.
A
principal: a chegada de dezembro. Que quando chegou, trouxe uma violência
inesperada.
Demissão
em massa das professoras e dos professores.
Ao
longo do ano, a Rede No Cume desenvolveu um novo sistema educacional, amparado
no uso de IA (degenerativa, a meu ver).
Todas
as aulas serão ministradas por avatares muito mais eficazes que pessoas –
segundo a propaganda.
Conteúdos
serão transmitidos com agilidade, qualidade e particularidade, pois cada
estudante estará em conexão direta com a IA, por meio da leitura de íris
realizada por um scanner acoplado na câmera dos tablets distribuídos gratuitamente
no ato da matrícula ou rematrícula.
Desse
modo, todas as reações biológicas serão monitoradas, na garantia da
aprendizagem.
Pra
que não haja estranhamento, os avatares terão aparência, voz e reações
idênticas àquelas das professoras e dos professores.
Nos
dias letivos, o Mexerica registrou as imagens e áudios, tratando-as na criação dessas
personagens da revolução pedagógica.
Cada
movimento, cada palavra, cada reação. Cada sentimento.
A
permissão pra tal feito estava concedida na política de dados, não lida,
obviamente.
No entanto,
não parecendo tão antiética e amoral, a Rede No Cume ofereceu um contrato de
liberação integral do uso da imagem, voz e sensações, oferecendo o valor
líquido de um ano de salário – parcelado em 12 vezes – a cada professora e
professor.
Nada
além disso, já que PJ não tem direitos no fim dos projetos.
Direção
e coordenação não receberam nada, porque não viraram avatares.
No
colégio, o atendimento por pessoas será limitado a algumas atendentes
burocráticas e aos seguranças que estarão pelos corredores e salas, na
manutenção da ordem – esses tipos de profissionais também estão com os dias
contados, a substituição humanoide se programa rapidamente.
Vale
dizer que essa mudança é a partir do Fundamental 2.
Fecharam
a Educação Infantil e o Fundamental 1.
(por
enquanto há a dúvida de que crianças pequenas não se adaptam às tecnologias de
cuidados digitais, mas Huxley está sendo estudado pra desfazê-la)
A
maioria das famílias adorou e comprou a ideia. Poucas saíram.
O
prefeito e o governador fecharam parcerias no teste da proposta, bancando a
estadia de jovens estudantes dos dois seguimentos.
Fechando
negócios pro futuro de administração particular da Educação Pública.
Do
time pedagógico, pouca gente recusou, entrando em processos trabalhistas que
não darão em nada.
Aquela
pessoa que acompanhamos nesta jornada, na sua vez de conversar com a
representante do RH, decepcionou-se com o resultado.
Já tinha
ouvido tudo, queria aceitar a proposta, planejar o gasto das parcelas e seguir
adiante.
Mas soube
que não teria nada.
Como
usava o Mexerica pela versão web, acreditando que não batia a foto, não fazia
questão de posicionar bem a câmera e fazer pose nas leituras do sistema.
O que
não sabia era que a foto estava sendo batida normalmente, com um pouco menos de
qualidade no processo.
Por
isso, seu banco de dados estava resumido aos tetos.
Nenhuma
imagem pessoal, nenhum controle. Nenhum direito.
Isso
não tinha sido percebido, pois o processo era todo automatizado, e neste caso
específico um bug passou sem contestação.
Saiu
da sala do RH com a boca amarga e o início de enxaqueca.
A sala
era atrás da capela. Passou pela santa e pela primeira vez parou diante dela.
Notou
que a pintura do rosto estava tão gasta que, sem olhos, ela não via ninguém,
assim como ninguém a via. Suja, rachada.
Olhou
seus santos pés descalços pisando a cabeça de uma serpente, sentindo o
envenenamento mortal que lhe corroía.
Fixou-se
nas mãos abertas da estátua, vendo que seu polegar esquerdo estava quebrado.
Solto.
Olhou
em volta, certificando que estava a sós com Maria.
Roubou-lhe
o dedão.
Sua
única lembrança física daquele lugar.
@francis.s.d